Crítica: 'Homem com H' rompe tratados e trai os ritos burocráticos das biografias
Em seu melhor filme, Esmir Filho equilibra uma estrutura tradicional e algumas amarras com uma tradução visual, fiel e criativa, do rebelde mais suave da MPB
“Homem com H” está indo muito bem, obrigado, nas bilheterias. E isso é pode ser inspiração para encerrar a crise de criatividade que se arrasta há anos num dos vícios favoritos do cinema brasileiro, o acomodamento plástico e narrativo das biografias de famosos. O sucesso se deve, provavelmente em maior parte, à popularidade de Ney Matogrosso, uma artista que construiu uma carreira sob o signo da subversão e da ousadia, mas que estranhamente une o Brasil.
Mas, para além do fascínio que Ney sempre despertou em seus público e contrapúblico, é impossível ignorar que o comprometimento de Esmir Filho em fazer uma biografia que foge — mas não tanto — do convencional patrocine parte deste êxito. Esmir tenta se cercar de todas as armas que o cinema oferece para traduzir não apenas a visualidade, mas a ideia de uma revolução pacífica que, de certa forma, transformou o artista numa quase-unanimidade.
A escolha pela narrativa tradicional, que elenca as fases da vida do artista cronologicamente — regra básica para diretores que querem fugir para o convencional — é usada com uma certa sagacidade aqui. Abrigado sob um manto clássico, o filme utiliza essa base confortável e segura para poder pensar na imagem não apenas como recurso memorial. Em cenas que partem de apresentações musicais e se tornam flashbacks clipados de registros da vida de Ney, o filme parece buscar conceitos e estados de espírito do homem e do artista.
Esses momentos recriam passagens históricas de Ney pelos palcos em reinvenções que se aproximam mais da ideia de insurreição e desprendimento a que o artista sempre foi associado do que do signo da autencidade e precisão que registros assim costumam ter como meta. Fecundado por cenas que carregam essa ambiguidade, “Homem com H” serve a quem busca as músicas, à apresentação das versões que Ney Matogrosso criou para si mesmo e oferece uma transgressão controlada onde fotografia, direção de arte e montagem se comunicam em rara harmonia.
Embora não se aprofunde em passagens importantes, como na infância que determina a relação com o pai ou na corrida sequência dos Secos & Molhados (salvo a ótima cena de Rosa de Hiroshima), o filme parece ter resolvido temas delicados como conseguiu. O documentário de 2021 — que leva o nome da banda e praticamente ignora Ney, onde João Ricardo apresenta a história do grupo como a dele — deixa claro que existe uma relação difícil ali. E o fato de vê-lo retratado em cenas delicadas (e de que o filme usa sem pressa os hits do trio) sugere um terreno onde não se arriscar pode ter sido definidor.
Mas esse provavelmente nem foi o maior desafio do filme. Diante da missão de retratar Ney Matogrosso, alguém cuja performance é um elemento fundador não apenas nos palcos, mas atravessa sua própria maneira de se relacionar com o mundo, como evitar uma natural predisposição para mimicar gestos e trejeitos e transformá-los em meros tiques? Segundo o próprio dono da história, Jesuíta Barbosa começou a estudá-lo desde a primeira vez que os dois se encontraram. E o resultado de uma observação atenta e silenciosa foi, stricto sensu, uma interpretação da impressão do ator sobre o cantor.
Se parece que vai riscar a caricatura na primeira cena, Jesuíta vira a peça-chave para que as engrenagens funcionem. Jullio Reis também faz um belo trabalho como Cazuza. A cena em que eles combinam o setlist de um show com um jogo de palavras em cima do palco de um teatro está entre as mais simples e bonitas do filme, enquanto a sequência dos beijos ao som de Postal de Amor é um bom exemplo de como, para além de algumas amarras, Esmir Filho dirige uma biografia bem superior à linha de produção de retratos genéricos que o Brasil produz todos os anos.
Com algumas fragilidades e muitos predicados, “Homem com H” transcende as bordas do gênero que o deveria aprisionar como se fosse uma metáfora das dualidades do homem cuja história conta: insulto ou trangressão, rebelde ou herói, o estranho que nós amávamos. É, ou deveria, ser o suficiente para deixar a sessão com a memória “da beleza do que aconteceu há minutos atrás”.
“Homem com H”, escrito e dirigido por Emir Filho, está nos cinemas e traz Jesuíta Barbosa e Ney Matogrosso como Ney Matogrosso, Jullio Reis como Cazuza, Bruno Montaleone como Marco de Maria, e mais Rômulo Braga, Hermila Guedes, Caroline Abras, Lara Tremouroux, Mauro Soares, Jeff Lyrio e Bela Leindecker, a bela fotografia de Azul Serra, montagem competente de Germano de Oliveira, e trabalhos sofisticados na direção de arte de Thales Junqueira, nos figurinos de Gabriella Marra, e na caracterização de Martín Macías Trujillo.
As fotos que acompanham este texto são creditadas a Marina Vancini.
Verdade, ele já tinha conseguido isso anos atrás naquela série que ele fez bem interessante chamada Boca a Boca para a netflix, pena que como não era uma obra tão comercial, não foi renovada.
Eu já estava louca pra ver esse filme. Depois dessa crítica, tô quase fazendo promessa ora ele entrar no circuito alemão! Parabéns, meu anjo!