Crítica: 'Pecadores' parte da música para investigar nossa relação sobrenatural com a ancestralidade
Filme de Ryan Coogler estreia nesta sexta, 06/07, no catálogo do Max
Há obras que atravessam tipos, gêneros e o próprio tempo cinematográfico. E há aquelas que nos atravessam. É sobretudo por essa última travessia que alguns filmes cravam sua marca. Pecadores reverberou como nenhum outro este ano: porque conjuga forma, discurso e usa fantasia como poucos conseguem. E talvez porque fosse um filme que ninguém esperava — um drama de época costurado pelo blues, um filme de vampiros gore, uma fantasia histórica sobre raça e ancestralidade e sobre a música como identidade cultural e expressão espiritual de um povo.
Na melhor cena que o cinema viu — e talvez ainda vá ver — neste ano, um jovem preto empresta sua voz poderosa para, entre acordes de rhythm and blues, entoar um relato confessional: um pedido de perdão ao pai por causa de seu juramento de amor à música. Reza a lenda que existem aqueles que cantam com tanta verdade que rompem as melodias do tempo, atravessam as fronteiras entre o real e o espiritual e convocam espíritos do que já foi e do que ainda virá. O canto de Miles Caton carrega essa verdade. O cinema de Ryan Coogler, nesta sequência hipnótica, prova que também.
A partir desse ponto, Pecadores se desloca para outro plano, onde as discussões propostas pelo diretor — que passam, necessariamente, por um retrato do lugar do negro na sociedade estadunidense — ganham uma complexidade quase filosófica. Coogler trafega por tradições, religiosidade e pelos mitos de fundação que ajudam a definir o conceito de um povo, buscando ressonâncias tanto no poder de representação da música quanto nos tecidos das narrativas ficcionais sobre monstros arquetípicos, que carregam a dualidade de simbolizar o medo do que está ao redor e o carma do condenado à marginalidade.
A tragédia e a atmosfera de ameaça perpassam o filme — e estão na base de construção de cada personagem. Coogler, aliás, delineia perfis muito claros — ainda que nada simplistas. Michael B. Jordan administra com bastante habilidade as diferenças entre Smoke e Stack, criando personalidades bem distintas, enquanto Miles Caton e Delroy Lindo, cada um a seu modo, trazem vitalidade para os arquétipos do novato e do veterano. Mas são as personagens femininas, vividas por Wunmi Mosaku e Hailee Steinfeld, e o líder dos vampiros, interpretado por um surpreendente Jack O’Connell, que carregam as camadas mais complexas.
O’Connell se arrisca ao apostar na afetação para ritualizar gestos e estratégias de persuasão, encontrando nuances justamente dentro — e por causa — do estereótipo. Na cena em que, tentando cooptar o grupo aprisionado no galpão, propõe uma aliança ao comparar as condições de perseguição e discriminação de negros e vampiros, o ator flerta com a figura do falso messias religioso, reforçando o olhar de Coogler sobre o fanatismo, como produto da manipulação e artifício a serviço da sedução do “Mal”.
Mosaku é uma atriz fascinante: traz, de modo inteiramente decodificado, sua herança teatral para cada papel. Sua presença impõe uma densidade que atravessa todas suas performances. Aqui, assim como Caton pela música, ela estabelece o elo do filme com o patrimônio da etnia. Na figura da mãe, carrega o feminino, a simbologia da origem e a conexão com o espiritual, acentuada pelo luto. As cenas em que contracena com Jordan, em que fala de sua relação e de sua perda, oferecem aos dois seus momentos maior complexidade.
Já a personagem de Hailee Steinfeld condensa tantas camadas e contradições que termina acrescentando outras perspectivas ao filme: é o interesse romântico e o amor proibido, a heroína e a vilã, mas, sobretudo, a única branca aceita numa comunidade negra — o que, por si só, lança sobre ela uma ambiguidade que Coogler explora com inteligência. Sua presença reorganiza alianças e mexe com lealdades, como se colocasse em xeque o apaziguamento racial. É nesse território limiar que o filme encontra uma de suas pulsões mais inquietas.
Pecadores pavimenta esse caminho temático antes de mergulhar de vez no terreno da ação e da fantasia — e, quando chega lá, faz uso do ritualístico e do mitológico para atingir um nível diferente de complexidade. Coogler, que já havia testado suas habilidades técnicas nos campos de batalha de Pantera Negra, aplica ao que aprendeu numa grande produção uma atmosfera terror mais consciente de seu poder de representação. Um terror que se sente na pele, vive na carne, ligado à luta por sobrevivência num plano quase ideológico e metafísico, onde o que está em jogo não é apenas o indivíduo, mas a família, o corpo social, um coletivo que, desde sempre, batalha para conseguir ver o sol nascer no dia seguinte.
Onde ver: Max, a partir de sexta, 06/07
Pecadores tem direção e roteiro de Ryan Coogler, que produz o filme ao lado da esposa Zinzi Coogler e de Sev Ohanian. Michael B. Jordan interpreta os gêmeos Smoke e Stack, Miles Caton faz uma estreia exemplar como Sammie Moore e Delroy Lindo vive Delta Slim. Wunmi Mosaku é Annie, Hailee Steinfeld faz Mary e Jayme Lawson é Pearline. Jack O'Connell interpreta Remmick. A bela fotografia é de Autumn Durald Arkapaw e a música é assinada pelo parceiro das antigas de Coogler, Ludwig Göransson. A direção de arte e os figurinos são, respectivamente, de Hannah Beachler e da veterana Ruth E. Carter. A montagem ficou a cargo de Michael P. Shawver.